Água Retorta 1922.
Retorta ou vaso bojudo de gargalo curvo para baixo e que se emprega na distilação. Seria por isso terra de gente que bebe. E quem bebe conduz. Este era é o lema de João Beija, vendedor de carros em segunda mão. Um aleatório visionário no que diz respeito ao equilíbrio populacional de Água Retorta. Com a bebedeira veio a diminuição da taxa da natalidade e o aumento da taxa de mortalidade nas estradas, mesmo que isto significasse uma perda substancial na futura e actual carteira de clientes, era um trabalho que alguém tinha que fazer.
Os sensos estavam equilibrados
A vida podia voltar ao normal, e como havia muita demanda para a segunda mão lá nasceu Beija. Tão crescida já está, ainda ontem era um bebé de colo, e hoje a galope no cavalo. Nua. Nua? Não. A técnica que Beija usava era body painting, pintura corporal. Pintava umas maminhas por cima das suas, por forma a parecerem tal e qual as suas maminhas verdadeiras. Os seios, claro bojudos, cambaleavam retortos, tal e qual os verdadeiros a galope no cavalo.
– É body paiting! Vocês não entendem nada.
A verdade é que verdadeiras ou não, naquelas maminhas pintadas se revelava a mais pura das sensualidades. A sensualidade de Beija. Todos aceitaram o conceito de pintura corporal, até o Padre, que diga-se de passagem tinha um retrato de uma mulher nua pintada com as cores da Castrol do seu lado do confessionário. (Óleo é matéria de Deus)
O Vereador Serrão
Era um homem para os seus 50, herdeiro de posição e terrenos e favores. Um destes terrenos era contíguo ao de João Beija. Serrão também tinha sido assombrado pela errância a cavalo da menina beija, nua, de corpo pintado como nua pelos prados. Serrão apaixona-se por Beija de forma avassaladora. O homem estava de cabeça perdida.
Primeiro tentou comprar a sua virgindade, a troco de uma licença de construção e do seu Mercedes vermelho 190D. Os lábios de João Beija tremeram antes de dizer:
– Isto é um ultraje.
Realmente era um ultraje. O 190D tudo bem, estava debaixo de olho, mas o resto do negócio, uma treta. Serrão no ímpeto da paixão precipitara-se, como sempre. A forma correcta de colocar a questão seria o casamento.
– Por troca de uma licença de construção e do meu Mercedes vermelho 190D……..e depois logo se vê.
Os lábios de João Beija voltaram a tremer, mas aquele – depois logo se vê – pareceu quase igual a uma acção de compra da virtude da filha com opção de troca, e como tal ultrajou-se a bel-prazer. Ultraje que não passaria enquanto não recebesse um pedido sério, comprometido. Pedido a que Serrão, bandido matreiro, jamais acederia. A sua posição na corte municipal era muito mais volátil a um casamento desenquadrado do que a um rapto, por exemplo. Que seria ao mesmo tempo muito mais fácil de abafar.
Depois da corte a rapina.
Um rapto! Que brilhante ideia. Tinha uma casa nuns terrenos que herdara do município no Nordeste. Naquela altura chegar ao Nordeste levava vários dias, caso se optasse por não seguir pela via rápida. Foi o que Serrão fez, pois estava possuído pelo desejo. Também tinha vontade de ir à casa de banho. A certa altura confundiram-se os dois. – Isto aos cinquenta, pensou para si. Entretanto em Água Retorta, e tal como previsto, ninguém desconfiara do sucedido.
– Foi o Vereador Serrão! Foi ele que raptou a minha filha! E de certeza que a levou para os terrenos que herdou do município lá para o Nordeste.
Naquela altura ainda não existia síndrome de Estocolmo. A Suécia ficava muito longe.
Obedecendo aos mais rigorosos padrões municipais a policia nada fez. E os Beija acabaram por aceitar. Não foram eleitos, não são os eleitos dos eleitos, muitos menos amigos de algum eleito. Aceitaram a perda da filha como quem aceita a expropriação de um terreno em favor da obra de um eleito. Ainda para mais os processos custam dinheiro e o negócio dos carros abrandava. Já todos tinham morrido ou estavam por nascer. E os que estavam vivos usavam os seus carros para irem ao Nordeste. Isto porque Beija, na relutância de se entregar a Serrão, ofereceu-se a todos os homens e mulheres que lhe levassem unhas postiças, tintas para o corpo e descontos no Groupon. Agora artigos em ruptura de stock nas lojas dos chineses.
Serrão, irado por não ter Beija só para si acaba por lhe conceder a carta de alforria. Mesmo sabendo que jamais voltaria a provar a sensualidade do seu arroz de pato.
E Beija, Beija sabia que esta era a oportunidade de montar o seu negócio. Um take away, ou melhor ainda, um bordel. Pensou em Lisboa, Paris, Amsterdão, Braga, tudo locais com muita concorrência. E porque não Furnas? Nada melhor que todo um ideal eruptivo para uma casa de meninas. Dona Beija – Furnas.
As mulheres viriam mascaradas de fazedoras de bolos lêvedos e cozedoras de maçarocas de milho. Disparariam ovos cozidos nas caldeiras, a altas temperaturas, das suas vaginas, para gáudio de todos presentes. E usavam robes brancos para entrar na piscina do Parque Terra Nostra de graça, onde ao centro posavam e mergulhavam nuas. Nuas não. Com os corpos pintados como se estivessem nuas, para não levantar suspeitas e morais. Tinham isto bordado nos robes, caso alguém perguntasse ou tivesse dúvidas.
Mãos de Fada
Até que um dia apareceram três homens vindos da Salga. Tinham passado a noite a fazer pão e tinham um desejo ardente de fazer de Beija a sua própria manteiga. Foi um desassossego. Os cães ladravam, a vizinhança chamou a polícia, que por sua vez chamou os bombeiros, que finalmente e após várias mangueiradas de alta pressão de água fria separaram os homens da Salga de Beija.
Mas o fogo não se extinguia no escândalo, na água fria ou nas nódoas no vestido herdado da Channel, como tal Beija decidiu banhar-se num fresco riacho que passava mesmo atrás de sua casa. O fogo e o calor de Beija era tal que a água subiu de temperatura até aos 39º graus. E até hoje a água mantém esta temperatura. Tendo-se tornado um ponto de atracção turístico, onde diariamente dezenas e dezenas de banhistas pagam para tomar um banho de água quente.
(Leve referência aos quadros de Giorgio de Chirico: Banhos misteriosos)
Pelo amor de Deus, vais mesmo partilhar?