A mulher do capote e os Jimmy Choo vermelhos.

E à hora do costume sem usar nada por baixo vestiu o seu capote. Nos pés, também encobertos, uns Jimmy Choo vermelhos  que comprara em segunda mão no ebay. Estavam como novos e tinham sido utilizados em Sílvio Berlusconi, por uma só ocasião, no Quirinal, durante um ritual fetichista. Facto que aparentemente em nada valorizara os sapatos, pois resgatou-os num último lance de 85 euros.

Ainda tocavam as sete badaladas quando entrou pela porta de trás da sacristia em tom de grande mistério, a cor do capote quase se fundia com a cor da noite. Fechou a porta e pé ante pé atravessou a ante camera, benzeu-se quando passou Santo António e abriu a enorme porta que dava para uma sala à qual só o Padre tinha acesso.

No interior mais umas quantas mulheres vestidas com o capote. Bebiam café e comiam donuts em pé enquanto trocavam conversas sobre  o tempo. Juntou-se a elas, até porque o tempo estava chato. Havia que exorcizar como quem exorciza o marido que tem andado com um feitio impossível. Era suposto ficar feliz quando o Benfica ganha, mas agora nem isso. Não basta ganhar por dois. Agora tem que jogar bem. Homens.

E nisto, com um ligeiro cheiro a enxofre entra o Padre. Homem novo, com boa aparência. Alto, galante, falante e andante. Em vez da batina uma jaleca e em vez da bíblia uma faca de chef.

Liga o projector que aponta para um lençol branco preso às mãos de duas estátuas afastadas para o efeito.

– 3º Workshop de Sushi – Paróquia dos Aflitos.

O Padre, para além da especialidade na ressurreição de Cristo e na divisão dos pães, tinha frequentado, nos tempos livres do seminário, um curso de sushi num restaurante em Algés, daqueles que se pode comer o que quiser por 8 euros.

Substituíra convenções desenraizadas como Califórnia por Rabo de Peixe. A manga que não era endémica trocada pelo ananás e o inflacionado Atum dos Açores substituído pela cavala, chicharro caneco, escolar e encharéu. Quando se detinha muito sobre um determinado peixe dizia:

– Que Deus me perdoe. Vamos rezar duas Avé Marias só pelo pensamento que nos assombrou!

Depois ponha a tocar o vinil do Bob Dylan, o Blonde on Blonde, o único que tinha escapado ao incêndio provocado por um correlegionário bêbado que extinguiu mal o incenso. Nem uma página da bíblia o fogo consumiu, veja-se como são as coisas. Sempre com o olho cá em baixo. Sempre com um olho na gente. Que diria ele daqueles Workshop’s de Sushi?

O Padre gostava particularmente da letra de “Just like a woman”. Provavelmente mais do que a sua passagem preferida da bíblia ou do Sermão aos Peixes do Padre António Viera. “Ama como uma mulher, finge como uma mulher, forte como uma mulher, mas quando se deixa ir abaixo chora como uma menina”. Talvez por isso o seu curso fosse só para mulheres. Admirava muito as mulheres. Foi por isso que foi para Padre, para que as pudesse admirar. Uma admiração pura, espiritual, religiosa e secreta.

Ninguém podia saber. Seria um escândalo na paróquia. Daí o secretismo, as vestimentas de capote, que não só escondiam os  Jimmy Choo comprados no ebay por 85 euros, mas escondiam as esteiras para fazer o makis e os urumakis, as facas de chef, o gengibre pickle, o wasabi em pó, molho de soja e o arroz.

Com a bíblia a servir de tábua para cortar o peixe, virada ao contrário óbvio, o padre desculpava-se a si próprio pelo facto de fazer um sushi digno do reino dos céus. Isto se São Pedro não se armasse em lambão na portaria. E também porque era importante passar a palavra. A taxa de mortalidade na sua diocese era elevada. Os homens bebiam muito vinho e comiam muito bife com batatas fritas. Facto. Mal sabia ele que no fim das contas não só a taxa de mortalidade se manteria como a taxa de divórcios dispararia em flecha. Facto. Um dos homens, depois de um jogo que o Benfica ganhou mas jogou mal chutou:

– Raios, o que se passa com o mulherio? Um homem quer encontrar uma mulher boa para casar e agora só fazem essa coisa do peixe cru. Onde é que já se viu um disparate destes? E eu vou para o mar há mais 20 anos.

Em parte foi o secretismo que salvou o padre do linchamento em praça pública. E em parte foram as mulheres que o salvaram do tédio monástico a que estava condenado. Elas e o Bob Dylan.

Até que um dia. É curioso como as coisas correm sempre bem até que um dia. Até que um dia a aula terminou, saíram todas as mulheres com os seus capotes vestidos.

Ela ficou para trás. Baixa o volume da aparelhagem. Apaga a luz. Ficam só as velas.

Deixa escorregar lentamente o Capote pelas suas costas, que faz uma curva ainda mais pronuncianda quando passa pelos quadris. A gravidade faz o resto e o capote aninha-se vagarosamente aos pés dos Jimmy Choo.

O Padre ia para falar, mas ela faz sinal com o dedo indicador sobre os lábios pintados de vermelho.

Com a mão varre o altar que servia de mesa de trabalho improvisada. Começa a tocar o Just Like a Woman.

Ernst_TheRobingOfTheBride1940

Max Ernst – The Robing of the bride. 1940. @ Peggy Guggenheim, Veneza. 129.6 x 96.3 cm .

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