O papel é um bem precioso demais para lá se escreverem textos medíocres ou para nele se limpar o rabo.

Só se escreve escrevendo é uma verdade quase tão incontornável e insofismável como a folha branco.
Eu por exemplo, estou a sujá-la. Mas há quem a glorifique com um magnífico texto.
Um texto que não desonra a árvore do papel, nem o lenhador, nem o burro, ou o boi que a transportam até à fábrica de papel.
Muito menos deverá desonrar quem com o engenho e arte transforme esta bonita árvore em papel.
Alinhado,
branco,
virgem,
imaculado.
Não, eu não o mereço. Parem com a manufactura já. E ainda não cheguei à parte em que alguém tem que transportar este papel, alinhado, branco, virgem, imaculado, para uma papelaria e já me estou a recusar.
Recuso-me. Recuso-me a comprar mais papel.
Devia ser proibido comprar papel.
O papel devia ser racionado apenas entre os grandes escritores.
Todos os outros, como eu, podem escrever na areia e mandar pintar um quadro. Se a maré deixar. Se não deixar, obrigado.
Entre não saber o que se faz com uma folha de papel em branco e uma tela em branco, que se dê a tela a gente sem talento, e deixe-se o papel para quem trata o verbo como um cavalheiro trata uma mulher, alinhada, branca, virgem, imaculada.
Que me desculpem, mas é muito mais complicado desonrar uma tela do que desonrar o papel. Mesmo sem talento posso fazer um rabisco qualquer que alguém muito entendido ache tanta graça e que um dia vai estar no Louvre, valendo mais do que todos os livros alguma vez escritos. Mesmo assim, não há nada pior que um papel potencialmente desonrado pela minha falta de talento e que no qual não posso rabiscar, desenhar, dobrar, rasgar ou atirar.
Nele só posso escrever. Palavras e textos magníficos.
E nada honra mais o papel que uma letra, uma palavra, um texto magnífico, daqueles que, por exemplo, só Antero sabia escrever. Um Nobel em potência, mesmo que não ganhe o Nobel. Que interessa o Nobel perto de uma folha de papel nas mãos de um Antero?
Se não está ao alcance de qualquer um escrever textos magníficos, então porque haveria de estar o papel ao alcance de qualquer um?
Dêem ouro a quem quer escrever ou ser escritor, diamantes, eu sei lá. Pouco me importa, desde que não lhes dêem papel.
Por mim, podem deixar de abater árvores. Libertem o burro e ensinem o lenhador a fazer ponto de cruz, ou outra actividade que não tenha a ver com papel.
O incerto da tarefa, o incerto de só se escrever escrevendo já é só por si matéria para tornar as árvores dos grandes escritores e os grandes escritores das árvores, sem qualquer escritura.
Só eles saberão se se bastarão um ao outro, pois nem um, nem outro sabem quantas árvores são precisas para se escrever um bom livro.
Muitas vezes quando se começa sabendo onde se vai acabar, não se sabe como lá chegar.
Às vezes sabe-se como lá chegar, só não sabe como começar.
E muitas vezes sabe-se como começar, tem-se uma ideia vaga de como lá chegar, mas não se faz a mínima ideia de como acabar.
Acredito que as grandes obras literárias se encontram mais nesta categoria. Partem de um princípio, de uma ideia, de um conceito que se escreve, que só escrevendo se escreve.
E quando é que vamos saber quantas árvores é que são necessárias para escrever um bom livro?
Quando o conceito chegar ao fim, ou as árvores acabarem.
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